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Um sonho para um Requiem !







Deitei, fechei os olhos e pus na playlist do celular uma canção; meu ritual arde indução ao sono. Escolhi "Da Pacem Domine", um canto templário, no estilo gregoriano, entoado pelos cruzados há mil anos. Adormeci, mas mais pareceu um ritual de passagem. De repente, quase que no mesmo instante que me percebo dormindo, abro os olhos em um outro lugar, jamais visto ou visitado !

Era uma civilização primitiva no meio de uma floresta virgem, uma espécie de cidade-santuário, e o sagrado parecia imanente em tudo ali, tanto na vida, quanto na morte. A quietude que busco no meio de tanta inquietação da vida urbana - e de meu interior - me abraçava na medida em que aquele santuário entrava pela janela de minha visão: era o sagrado me invadindo, me buscando, diferente de toda a experiência religiosa ocidental. Já que mencionei isto, lembro de como tudo ali parecia uma experiência religiosa, sacra...mas, sem as prerrogativas da ascese flageladora e amputadora dos últimos milênios. Era o sagrado percebido em toda a sua grandeza, intimidade, responsabilidade, senso de dever e comunidade , mas sem nenhuma lembrança de culpa, demandas, indulgências, nada que lembrasse o alto custo da vivência piedosa que tanto testemunhamos.

Em minha memória, recordava as palavras de um amigo virtual que instou para que eu me recolhesse nesse lugar, pois reconhecia a minha necessidade. Em estado de vigília - acordado - jamais conversei algo assim com esse "amigo", e nem mesmo nada relacionado às minhas inquietações e jornadas em busca da verdade. Mas, no sonho, era clara essa memória dos seus conselhos, e uma pequena introdução ao que me aguardava: era um alerta para o quanto eu seria confrontado em meus preconceitos antropoteológicos.

Voltando à minha estadia na cidade-santuário !

De fato, os alertas de meu amigo virtual mostraram-se acertados: era tudo tão distante do sentido de "sagrado e divino" do que tinha apreendido até hoje...

A cidade-santuário, onde toda a experiência humana era sagrada em suas mais plenas manifestações - vida e morte, como na tragédia clássica - não possuía deuses ! Não, não era aquele frágil panteísmo , onde tudo é deus e todos são, em parte, deuses. Não mesmo ! Era uma comunidade primitiva totalmente humanista (se usadas as noções de nossa era), como, com certeza, jamais deve ter existido. Uma pequisa rápida no mundo antigo , e um dos elementos sempre presentes será a metafísica ,o fundamento da organização de comunidades primitivas, e sua irradiação nas relações de poder e hierarquia nas classes da determinada sociedade.

Nessa comunidade submersa em florestas densas, não haviam deuses, sacerdotes, cultos, uma legislação, nada, nada mesmo, que caracterizasse uma sociedade convencional. O sentimento que havia, era que as leis sagradas estavam inscritas em cada coração e alma ali, e todos se olhavam como que se refletissem em espelhos; humanos espelhos. Uma espécie de profunda e amalgamada consciência coletiva, um corpo vivo, consciente de cada uma de suas partes.

A hierarquia se organizava pelo jeito mais "old school": a antiguidade. Os mais velhos eram tratados como oráculos, portadores da sabedoria de todos os povos, e responsáveis pela transmissão e perenidade desse legado. "Quanto mais velho for um homem, melhor prognosticador será", disse , certo inglês. E ali isso era levado muito à risca. Os anciões eram os senhores da vida e da passagem (morte). Volto nisso, um pouco adiante.

Como não haviam deuses, obviamente, também nenhuma forma de oponente metafísico: diabos, demônios, fantasmas, assombrações,etc.

Todos os nativos eram seres alados, e , pela minha experiência ali, eu fôra gerado naquelas terras, pois também me percebi voando por cada pedaço daquele paraíso. Mas, nada havia de sobrenatural nisto, e isso também me sacudiu, me lembro. Voar, ter asas, essa unidade mística entre todos os entes era tudo, aterrorizadamente , natural. A liberdade irrestrita era a lei. Liberdade para ser...e não ser.

Sim, liberdade para o não-ser correspondente às tradições daquela comunidade. Deparei-me, cacei, e aprisionei alguns monstros. Donde vieram? Eram seres nascidos ali, e que optaram pelo homicídio, furto, enfim,todos os atos que atentavam contra a liberdade cultuada. Não me explicaram como isso era possível, essa inssurreição contra uma vida tão plena. Somente entendi que, como arquétipo da experiência humana, sempre haverá uma "serpente" habitando cada mente e alma no paraíso. Não haveria liberdade sem as tais tangentes e possibilidades; não é mesmo? Não passei tanto tempo por lá, à fim de aporrinhar os anciões com minhas questões chatas de sempre. Mas, enfim, a maior impressão que ficou foi esta: essa era a religião, a liberdade.

Homicídio ,uma forma de atentado contra a liberdade? Isso mesmo ! Na cidade sagrada - e me emocionava testemunhar isso - cada homem, mulher, criança, escolhiam como viver...e como morrer. Por isso o homicídio era visto de modo ainda mais radical: era subtrair a última escolha, o derradeiro prazer do indivíduo.

Presenciei inúmeros rituais de despedida, e eram uma celebração à vida em sua expressão mais extrema.

Os anciões, imbuídos de uma logística e entendimento que nem cheguei perto de compreender, é que decidiam quando cada habitante deveria morrer; se novos, jovens, ou os que serão mantidos para a velhice como transmissores. Não havia , uma dúvida sequer, sobre a autoridade e o papel dos anciões nisto: é um processo milenar na cidade-santuário, e o funcionamento perfeito desta advoga em favor dos anciões.

Após isso, cada homem escolhia a sua própria morte: envenenamento, fuzilamento, saltar de um despenhadeiro, afogado, queimado...e ,pasmem, todos estes momentos pareciam com qualquer outra coisa, menos com a nossa, habitual, morte. Parecia o último orgasmo ! O último grito ! O último ato de gratidão ! Sem nada esperar do outro lado...contentado pelo tempo colhido neste lado.

Cada habitante ali tinha seu próprio mascote, um animal, que era , literalmente, a extensão do seu ser e de sua família. A morte do habitante, necessariamente, determinava a morte do animal; e isso também era motivo de gôzo. Amigos, partícipes em tudo, até o último fôlego. Isso me lembrou o Clives S.Lewis, em seu livro "O Problema do Sofrimento", e sua tese sobre como, homem e animal de estimação, participam da mesma comunhão. Sim, sei que é muito romântico; mas me identifico.

Testemunhei dezenas de momentos assim, e nenhum me horrorizou. Eu sentia a grandeza de uma vida vivida irrestritamente, sem julgamentos, sem moralismos rasos, terminar de modo também gradioso: um sujeito alegre, escolhendo como seria sua "festa de despedida".

Até que, passados tempos que não dimensionei (tempos oníricos não são mensuráveis), os anciões escolheram o meu momento; terrível instante. Por que? Porque, como numa forma de teste, eu deveria escolher como morreria o meu mascote, sem que eu morresse. Eu seria o primeiro ali a se separar de seu avatar animal, de não poder comungar da mesma despedida, e vê-lo partir sem mim. Eu já disse como , nessa comunidade, os animais eram extensão dos habitantes. Isso não era ,somente, simbólico: era um elo atávico, familiar, parental. Eu teria que, literalmente, ver parte de mim morrer, sem poder morrer integralmente e em paz e satisfação.

Por que eu? Por que somente eu teria que passar por isso, escolher como faleceria parte de mim, sem permissão para o mesmo, conforme o ritual e a tradição comunitária? O que eu deveria aprender? Por que, somente eu, é que tinha algo a aprender?

Como meu mascote era uma pequenina cadela, chamada "Nigrum", eu deveria dar continuidade ao ritual, mesmo com o interior revirando-se em questões.

Pelo seu tamanho minúsculo, sem problema algum, escolhi a morte por imersão em ácido: garantia de ser uma completa diluição, ao mesmo tempo indolor. Seria somente um grito entalado, e uma despedida. Puseram-na em um recipiente cheio de ácido, mas, contrariando o já testemunhado muitas vezes ali, ela não se diluía, uivada de dor mas resistindo em corpo e vontade ao destino, estava ali uma parte importante de mim, e que, em tudo como eu, recusa-se a diluir-se e desaparecer. Tiraram-na do recipiente, e passaram a dar tiros à queima-roupa, sendo o último deles na cabeça, quando ouvi seu último e desesperado suspiro.

Ela morreu...parte de mim também...e eu acordei chorando.

Foi um sonho, e não precisa ter significados nem diagnósticos. Mas, uma coisa eu aprendi nessa experiência na cidade-santuário: não há nada que seja tão perfeito, que não possa padecer diante de algumas escolhas que fazemos concernentes à partes vitais de nossa caminhada. Certas escolhas não são para a vida: são A própria vida.



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